sábado, 31 de janeiro de 2015

Voo cego

Cinema um dia já foi algo muito próximo de uma religião. Entrar na sala escura, desligar do mundo lá fora e se jogar numa outra realidade na qual sua alma é possuída pelas almas das personagens que desfilam na tela. Hoje por alguns motivos isso se torna mais difícil de acontecer, como por exemplo, as salas de cinema de shopping cheias de gente mal educada que se comporta como se estivesse na sala de estar de sua casa não respeitando o silêncio do templo. Outro motivo é a tendência cada vez mais normatizada dos filmes tratarem as personagens com a superficialidade que lhes permite serem esquecidas no dia seguinte, para que outras tomem seus lugares e gerem mais renda aos estúdios. 
Poucas películas contemporâneas conseguem transportar os espectadores mais exigentes ao templo no qual esse modelo de transcendência é possível. Há algum tempo atrás isso aconteceu com "A Grande Beleza", mais recentemente com "Relatos Selvagens" e agora com "Birdman" - poderia incluir "Grande Hotel Budapeste", mas o ponto de ebulição dessa obra não se localiza nas personagens necessariamente, e sim na vertiginosa narrativa. Em Birdman, a personagem encarnada  por Michael Keaton  (Riggan) nos possibilita vivenciar o lado da fama que muitos fazem questão de fazer de conta que não existe, o lado no qual a crise de identidade parece sufocar o voo de qualquer ator deixando-o no limiar da decadência.
Para começar, é impossível não relacionar a personagem Birdman, que Riggan não quer mais encarnar nas telas, (exatamente por  lhe dar tamanha projeção quase não lhe possibilitando outros voos interpretativos) ao Batman vivido por Keaton e dirigido por Tim Burton que o transformou num astro mundialmente reconhecido - ressaltando que nesse caso Keaton não desistiu do papel do Homem-Morcego, foi o estúdio que quis transformar a franquia em algo menos sombrio e mais lucrativo, o que afastou tanto Keaton quanto Burton. 
Nas cenas iniciais de Birdman o drama vivido pela personagem Riggan  não deixa dúvidas que esse não é um filme para entreter e sim para fazer refletir sobre o sentido da vida, com seus altos e baixos, como se supõe que uma "verdadeira" religião deva fazer. O diretor Iñárritu leva a personagem Riggan  para um palco na Broadway, talvez respeitando o último pedido de um ator que se sente muito próximo da morte enquanto "força da natureza". Afinal não é no cinema mas sim no teatro que um ator pode sentir de perto as reações da plateia, se é que ele ainda pode fazê-la reagir. Conduzindo o filme com grandes planos sequência, Iñárritu permite que o espectador voe junto com Riggen eternamente em conflito com seu alter ego, Birdman, questionando o que é arte e o que é bem de consumo. Não por acaso já se comenta que a carreira de Michael Keaton está prestes a alçar novo voo, tendo recebido convite de Tim Burton para participar da continuação de Beetlejuice - Os fantasmas se divertem. Quem tiver asas que  as abra junto com a(s) personagem(ns) vivida(s) por Keaton e descubra se o céu é o limite.


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