sábado, 9 de janeiro de 2016

Os oito odiados  e a matemática inclusiva

Fazer uma leitura dessa obra é abrir mão do 2 + 2 = 4. Sim, porque primeiramente é necessário jogar fora as tabuadas que se pretendem facilitadoras da vida do espectador. Li duas resenhas antes de assistir a película que falam de um roteiro cheio de questões políticas, principalmente relacionadas ao racismo, apontando que a obra é um acerto de contas com a América excludente. Uma delas chega a frisar a relevância do filme no momento em que as discussões raciais voltaram à tona nos EUA, pois as filmagens transcorreram durante as tensões em Ferguson e Baltimore nas quais negros foram vítimas de violência policial. Depois de sair da sala de cinema só dá pra entender essas resenhas de dois jeitos.  Como pura  balela escrita por quem queria mostrar alguma erudição ou que o filme dialoga com seu ponto de vista, mas esse tiro sai pela culatra, pois as próprias declarações de Tarantino deixam claro que ele não  tem nenhuma pretensão de soar politicamente correto.  

A segunda leitura talvez seja mais condescendente com tais resenhas -  e nesse sentido esse texto corrente também pode ser enquadrado em tal modalidade -  pois escrever sobre uma obra é criar uma obra diferente da original, é gerar um hipertexto. 
Feitas tais ressalvas, vale afirmar que para além dos cinco capítulos, o filme pode ser dividido em dois momentos: o primeiro se desenvolve enquanto os personagens vão sendo lentamente apresentados ao espectador e isso dura cerca de uma hora. Para alguns espectadores que já anseiam por sangue desde sempre essa primeira hora pode ser uma frustração, mas Tarantino não tem nenhum compromisso com a zona de conforto da plateia. Pelo contrário, desde o filme anterior, Django livre, no qual revisita ou gênero clássico do cinema norteamericano, o Western, ele subverte a fórmula original com diálogos desconcertantes, porém mais (aparentemente) verossímeis do que ele criou para por exemplo, Pulp Fiction.

 O segundo momento se dá quando os personagens centrais estão reunidos no mesmo espaço físico (um suposto armarinho) e fica mais ou menos clara qual é a trama que conduz a obra. Esse segundo tempo dura quase duas horas, mas em nenhum momento se torna um tempo cansativo pois a dinâmica imposta acrescenta um suspense psicológico que lembra uma trama de Agatha Christie com toques hitchcockianos.  A partir de então o filme cresce numa espiral envolvente, com reviravoltas nunca óbvias até o gran finale. A violência que brota é quase naturalizada em torno dos conflitos psicossociais a ponto de não chocar, por mais intensa que seja. O elenco cheio de gente tarimbada tem momentos sublimes que fazem o espectador se sentir como num teatro observando nuances faciais e gestuais - para isso a direção de fotografia e a trilha sonora de Morricone contribuem absurdamente. 

É ai que as questões políticas, raciais e de gênero ganham contornos mais profundos, mas nunca de forma panfletária. Vai caber ao espectador abraçar suas convicções éticas em diálogo com o filme, mesmo que muitos não compreendam  os aspectos da guerra civil estadunidense - vale lembrar as declarações do  diretor nas quais ele compara os confederados ( os "8" estados sulistas que lutavam contra a abolição da escravatura) aos nazistas. E talvez por tais declarações alguns o vejam como "politicamente correto", mas só que não é tão simples. Aliás, a matemática de Os 8 odiados não é nada simples, mas sobre isso é melhor que cada um assista a obra e use os dedos pra contar o que tiver de ser contado. No momento histórico em que a cultura de ódio é lugar comum nas redes sociais esse filme pode ser um grande exercício para entender como transitar entre interesses próprios e a (in)tolerância, mas não deve ser  usado como manual ou tabuada.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Uma obra de fôlego - produzida nos pulmões!

Há alguns anos, uma das minhas falas típicas quando o tempo se impacientava era: "Vou levantar âncora!" Para outros mares, para outros bares, para outros desejos.
No livro que o próprio tempo escreveu é possível ler que âncoras podem significar segurança. Assim como podem significar acomodação e aprisionamento. 
E o tempo se impacientar não era e não é difícil. Às vezes, basta respirar para que isso aconteça. Ou, dizendo de outra forma, se costuma prender a respiração para que o tempo pare, para que seja nosso refém. Mas isso nunca dura o tempo suficiente, logo o ar nos foge sem controle, pois o que é gasoso não quer apodrecer como prisioneiro de nossos frágeis corpos humanos. Então, ficar no mesmo lugar ou levantar âncora e se movimentar é basicamente uma obra de fôlego! Um processo produzido nos pulmões! Se for assim, não é coincidência serem os pulmões que se enchem de água quando se levanta âncora para mares incontornavelmente revoltos que por eles é impossível navegar sem naufragar - se não for com a imaginação.  
Quem não quiser abraçar esse último ponto de vista deve torcer para que as âncoras de sua existência criem raízes mais profundas que o possível de conceber. Para os adeptos dessa postura, os ventos são uma terrível ameaça já que podem provocar a quebra da inércia. Só que o nascer e o estar vivo dos humanos não se reflete em inércia. O que se reflete em inércia inquebrável  é a morte!  Desse modo, o perambular entre o ar respirável que suscita o movimento de contração e de expansão e a água corrente que pode conduzir os desancorados tanto a continentes perdidos quanto a ilhas solitárias seria o sentido do existir?
Talvez seja preciso arriscar levantar âncoras do porto inseguro desse texto para saber. Talvez navegar seja realmente preciso. Talvez viver continue sendo impreciso. Talvez o fôlego que basta e o fôlego que falta possam parir as respostas...talvez.