sexta-feira, 24 de março de 2017

Terceirização

Já foi dito que chegar em segundo lugar é chegar em último.
Deve ser por isso que no Brasil o medo chega em primeiro lugar e a liberdade e a segurança chegam em terceiro.


quinta-feira, 23 de março de 2017

O cinema de cada um

Cinema é geralmente interpretado como entretenimento, mas pode ir em outra via, a da problematização de questões da vida cotidiana. Nada impede que ambas as possibilidades aconteçam ao mesmo tempo, só que para a maioria é difícil trabalhar com os dois lados da moeda da realidade. Nesse mês de março o cinéfilo e o curioso  têm boas opções nas salas da cidade para curtir a segunda via. Começando por dois filmes que foram muito comentados em função de concorrerem ao Oscar: Moonlight e Um limite entre nós. As narrativas são bastante diferenciadas, mas em comum está o objeto que recebe o foco. Ser negro nos EUA! Sem apelar para recursos  melodramáticos - são histórias trágicas - os dois filmes traçam um panorama duro e cruel das construções identitárias que  homens e mulheres negros vivenciam. Em Um limite entre nós a história se passa no século passado e tem ritmo teatral, principalmente pela formatação dos diálogos nos seus minutos iniciais. Há um foco nas relações entre classes quase transformadas em castas e nos vínculos familiares, principalmente pelos complexos assimilados pela personagem brilhantemente vivida por Denzel Washington que também dirige a película. Vale salientar que se a personagem de Viola Davis tem menos tempo de exposição, na parte final a interprete rouba o filme.


 Moonlight é uma história contemporânea, e atualiza a dificuldade da construção da identidade, principalmente na abordagem das relações entre etnia, gêneros, sexualidade e violência.   O aspecto que hipnotiza o espectador é que a obra nos permite acompanhar a transformação de uma criança em adulto quase que nos possibilitando enxergar o mundo com seus olhos. Não por acaso chegou como azarão e acabou levando o Oscar que parecia ser destinado a um filme bem produzido enquanto remix, mas insípido. Um terceiro filme que dialoga com esses dois é Eu não sou seu negro, um documentário baseado em obra de James Baldwin.  Na infância,  Baldwin assistia filmes de cowboys e se identificava com a galera de John Wayne até que um dia ele percebeu que na real ele era o índio sempre derrotado pelo cowboy. Isso também aconteceu comigo e com muitos do que lerão essas linhas. E como resolver esse dilema? Nem pensando como Malcolm X, que acreditava na separação das raças, nem como Luther King que acreditava na conciliação. De acordo com Baldwin, a construção do negro é como a construção da mulher, quando sua identidade é processada em sintonia com a percepção do seu passado. E nesse sentido, o passado é o presente! Sem essa atualização de valores nada deixará de ser como é.



Saindo desse recorte racial, mas mantendo o olhar sobre os processos sociais de exclusão, temos um filme europeu, Eu, Daniel Blake,  cuja história se passa na Inglaterra mostrando uma situação kafkiana na qual um homem sacrifica a sua vida para conseguir um emprego. A burocratização na qual ele é  mergulhado é tão absurda que "O processo" de Kafka ganha cores que são completamente compatíveis com nosso olhar atual. Não por acaso esse filme levou a Palma de Ouro em Cannes, um prêmio muito mais significativo que qualquer Oscar, se a questão não for apenas turbinar as bilheterias. E por fim, temos O silêncio, uma belíssima obra de Scorcese que foi esnobada pelo Oscar, e que nos mostra a irracionalidade do processo de colonização do inconsciente proporcionado pelos jesuítas portugueses no Japão do séc. XVII.  Uma obra que nos faz sentir, por tabela, a alienação que os indígenas e os negros trazidos da África sofreram no Brasil em contato com os jesuítas. Se a obra tem como referência o olhar dos próprios jesuítas - e apesar do ator central carecer de carisma - o roteiro é tão bem construído que podemos acompanhar emocionados tanto sua inicial fé cega como suas posteriores dúvidas e inquietações. A obra tem sutilezas na construção narrativa que só podem ser sentidas  em contato com sua fotografia e com sua trilha sonora.  



Quem leu esse texto até aqui pode ter certeza que o cinema que não se limita a ser entretenimento pode ser tão enriquecedor e revigorante quanto boas doses de adrenalina e dopamina disparadas por filmes de ação e por comédias bem adoçadas. Mas isso depende do filme que é a vida de cada um.