sábado, 2 de abril de 2011

Diante da Esfinge

    Ao contemplar absorvido o olho daquela xoxota lacrimejante, ele encontrou-se perdido em definitivo. O coração disparado, o metabolismo tomando ciência de que a única opção era aceitar que não havia opção.

    Daquele buraco negro possivelmente impenetrável em sua totalidade, emanou uma vibração visceral, feromônica e retumbante, um aroma sem cor que por todos os poros ecoou: “Decifra-me ou devoro-te! Decifra-me ou devore-se! Decifra-me e devoro-te!”

Confissões de um Consumidor I

      Às vezes sinto uma compulsão junkie irresistível e me seguro enquanto posso, mas parece não haver saída além do abismo da tentação. E eu que acreditava já estar com o sangue limpo e a alma lavada!
     Num esforço involuntário, meu corpo leva minha pessoa em busca do objeto de desejo tão maldito quanto deleitável. Tento passar sem olhar, evitar perceber que por ele minha vontade lambe o chão e joga a toalha no primeiro round. Entrementes, o hercúleo esforço esbarra na fraqueza da carne que se consome na ânsia eminente de um consumo inalienavelmente vil.
    Começo a tremer e minhas mãos suam pelos pés. Meu coração dispara como um torpedo sem alvo. O ar paira pesado e quase asfixiado, me rendo a fraqueza da determinação que broxou diante da tentação exercida pelo imponderável.
     Em desespero ontológico e patético, rendo-me a secura da boca que sonha com uma fonte iminente, um álibi para saciar a sede de viver. Às cegas, como um peregrino procuraria um oásis no deserto, procuro um mercador de ilusões que esteja a fim de lucrar e se divertir com a minha fraqueza. Enfim, de joelhos diante do oráculo que me decifra as entranhas enquanto me devora os últimos trocados, estendo os braços para rogar sem escrúpulos e sem vergonha da humilhação a qual me exporei em público:

- Pelo amor de Deus, me dá uma Coca-Cola aí!




   



Confissões de um Consumidor II

Adoro ler bula de remédio
só pra saber se consumo
ou se estou sendo consumido...


sexta-feira, 1 de abril de 2011

Universos Profanos




Imagem - Tom Valença & Soraya Midlej


I - Antigamente o Tempo*


Na vastidão de um deserto africano o peregrino abatido pela sede avistou  um oásis. Certo de que era uma miragem, ele virou as costas.  Antes  de atingir a metade do percurso da sua jornada, resolveu retornar ao ponto de partida. Decepcionado consigo mesmo, ele percebeu que sua vontade para concluir o trajeto ainda não possuía a força de um desejo.
 No meio do caminho de volta perdido em reflexões, o  andarilho encontrou quase enterrado nas dunas um relógio de areia, uma ampulheta. Hipnotizado pela lenta queda dos cristais, o viajante  ficou a observar e admirar seu brilho, por minutos e horas. Quando enfim o dia trouxe os ventos do norte,  estes começaram a soprar um silêncio cheio de sonoridades, reverberante  como uma tempestade de grãos:

                     "A vida eterna se encontra 
                   na absoluta relatividade
          veja o peixe que nasce sem asas,
                     ele, no tudo  nada!"
 
Imediatamente o caminhante percebeu que o destino exigia que ele seguisse em sua jornada. Na necessidade do movimento, sentindo como a ampulheta o imobilizava resolveu enterra-la. Pôs-se a cavar, cavar,  foi cavando, foi,  cavou e cavou tanto que acabou encontrando água. Mesmo que tudo parecesse outra miragem, o passageiro da vida descobriu como retomar a viagem. Agora  seguiria com uma porção líquida do infinito dentro do cantil e com o brilho dos cristais de areia dentro dos olhos.

  * Fragmento de Universos Profanos

II - A Última Piada*


              A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas sentadas         


        

Finalmente, após longa espera, saíra o veredicto para o réu que nas últimas semanas vem estando no centro das atenções da mídia e da opinião pública; um palhaço acusado  de chacinar uma plateia inteira. Pelos requintes de perversidade apresentados no hediondo crime - a plateia morreu de tanto rir após o palhaço contar uma piada letal –  a histriônica personagem foi considerada culpada e sentenciada a seriedade perpétua.
Arrasado pela situação, o palhaço entre lágrimas e soluços implorou ao juiz para que lhe fosse concedido, diante do júri e das câmeras de TV, o direito de contar a última piada.  De imediato, uma gargalhada coletiva tomou conta do tribunal.  O  juiz mal conseguindo se conter no contexto absurdo do pedido consentiu, antes questionando com sarcasmo se  os presentes não correriam algum risco. O tribunal se dividiu   entre o riso de uns, e a desconfiança de outros.  O palhaço assumiu uma feição tão séria que todos se calaram. Então ele sorriu, levantou-se  e falou:
Dançando em frente ao espelho
encontra-se um palhaço nu em pelo
querendo a todos seduzir,
inclusive a si e a si mesmo
Um clown que ri e chora
das desgraças da  triste plateia
e de você ele fala agora
no embalo de uma noite de festa:
Quando nasce o  belo dia
eu plugo o fone do destino
contando piadas sujas
que a você dedico
À tarde você sai
e eu derrubo suas paredes
só pra te ver voltar y volver
pedindo abrigo que seu dinheiro
nunca pode ter
À noite com o sono girando
 ao redor de sua cabeça
eu urro, suo, gemo
 te empurrando da rede
Ao entrar no seu sonho
eu digo e você ouve:
“Bem-vindo ao paraíso fantasma
ao grande circus humano
onde o seu ingresso
é o desejo de desejar
A sua sorte já foi lançada
junto a moeda do troco
e o perfume que te segue
tem a marca dos escolhidos
Se o medo te dominar
saiba que esse medo  faz crescer
celebrando as batalhas urgentes
da ciência do corpo e mente”
Pra quem a vida é uma piada
eu estendo o chapéu 
e entre uma risada e outra
espero que depositem a fé!
Os sinos dobram
e eu escolho quem pode rir
pelo cheiro do sexo
Quando cessa a música
eu cito Shakespeare
arrancando lágrimas sanguíneas
de velhos, crianças e mulheres mal-amadas
Entre um dia e outra noite
eu arremesso bombas de fumaça
projetando vossos letárgicos sentidos
na nostalgia duma paixão esquecida
Com um falo imaginário
eu estupro vossas dores
e com um beijo envenenado
acaricio vossos traumas
Agora quase perto do fim
me responda sinceramente
 - mesmo que isso contrarie sua natureza -
você acha que da minha piada
quem ri por último ri melhor?
Ato consumado,
o palhaço de Deus ri
 e  rindo rompe a vigésima quinta hora
antes mesmo que você acorde
antes, enquanto a piada se resolve
 Como vosso espelho cheio de luz
só reflete o vácuo,
o palhaço que nu ri e dança
e te acorda
dança em você e quer saber:
- Quem ri agora?
ri o filho de Deus ou o prisioneiro da aurora?

        A partir desse instante as informações são contraditórias, mas em um aspecto parece haver um consenso em relação ao que aconteceu naquele tribunal; todos lembram claramente de escutar uma ensurdecedora gargalhada, um som para uns tribal, para outros metálico, som que se propagou como um eco de si mesmo. Os presentes no recinto pareciam ter sido lançados num transe catatônico, e só aos poucos o torpor coletivo foi se dissipando.  De maneira inusitada, muitos retomaram o fio da meada se sentindo bem, alguns até se dizendo revigorados, a despeito da bizarra circunstância.  Só após então, sinalizado pela promotora, percebe-se que no lugar onde antes encontrava-se o palhaço, há apenas uma peruca laranja, um nariz vermelho e um espelho parcialmente quebrado com um sorriso estampado no centro.

  * Fragmento de Universos Profanos
     Imagens - autores desconhecidos

III - Mensagem*

    O garoto tido como travesso acordou de um sonho onde jogara mortal kombat contra a própria sombra. Lembrava claramente das palavras que saíram da boca do vencedor, muito antes que o jogo estivesse concluído:


“Acordei esta manhã
do sonho de estar morto
Morri de medo e voltei a dormir
só pra ressuscitar
e acordar
no sonho”

O   adolescente   um   dia   travesso, levantara da cama e  já era quase um  adulto sereno. Ele mirou-se no espelho e incrédulo viu um senhor quase sorridente. Do outro lado da moldura, lábios umedecidos começaram a se movimentar sem pressa:

Meu filho
girando ao redor das horas
vai a  memória feito bola
pois a memória girando ao redor
feito bola vêm as horas.
Boa viagem!

O homem mais sereno que travesso, nunca mais  deitou sem antes encarar o espelho.   Ele  agora  que está acordado, sabe   que  o mais mortal dos  kombats   continua  a ser travado através dos tempos presentes, indefinidamente.


  * Fragmento de Universos Profanos

IV - Revelação*

Por volta de três da manhã, a dedicada professora de lógica formal ainda corrigia provas.  Já cansada, botou os olhos na avaliação de um aluno que ela não conseguiu identificar, mesmo após ler seu nome várias vezes. Ela que sempre foi elogiada por sua memória fotográfica, se sentiu desconfortável. Mais desconfortável ficou ainda quando ela aproximou o documento da luminária e percebeu que a prova havia sido escrita com tinta vermelha que  não estava totalmente seca.
As pálpebras da docente começaram a fechar pesadamente, mas  após um gole de café ela seguiu lendo , e aos poucos foi tendo contato com o que estava escrito no espaço reservado para respostas:
  Eu estou em DEUS
tu estás no eu
em dEUses  me partilho
teu DeuS  mEU !
Eu sou no seu Deus
mEUs   EUs   tEUs
u  tEU dEUs...
atEU sEU...
EUs,
EU

Ao terminar de ler aquela avaliação, uma mulher que quase nunca sorria levantou-se e foi até a cozinha. Com mãos suadas se apropriou de uma garrafa de champanhe guardada por extensos doze anos.  Sorvendo o líquido diretamente do gargalo, sentiu medo ao lembrar que dentro de oito dias completaria cinquenta anos.  Sorriu e gargalhou. Só depois de mais alguns goles, teve certeza que nunca fôra tão fácil e prazeroso sorrir e gargalhar. Na verdade não se achava capaz de tal proeza, nem nunca acreditara  seriamente que valesse a pena, afinal esses comportamentos não faziam  sentido lógico.  Como nunca, uma atitude impensada se fez  precisa e inquestionável. Ela  deixou o resto das provas para  corrigir depois e continuou a sorver o precioso líquido, afim de absorver suas profundas substancias. Claro que não conseguiu evitar  de ler aquela prova mais algumas vezes antes que o dia raiasse.
Ao acordar, atingida pela ressaca - a primeira que se permitiu em meio século -   mas não moralmente abatida, tratou de se recompor  e viu o que deveria ser  prioridade lógica  antes das prioridades lógicas. Sem pestanejar, decidiu aceitar a licença prêmio que tinha direito há algum tempo. Com calma, mas sem a frieza do raciocínio habitual; adiou seus compromissos,  gravou uma mensagem na secretária eletrônica, comprou   roupas novas e partiu para uma longa viagem pela planície dos Andes.

  * Fragmento de Universos Profanos



V - Visita*

O  estudante de nível médio visitava pela primeira vez uma exposição de artes plásticas.   Depois de muito ouvir falar de arte fragmental estava ele ali, junto ao grupo de colegas observando tudo com grande curiosidade e atenção. Notou num canto pouco iluminado, um quadro em proporções reduzidas.  Chegando perto, notou também uma lupa pendurada num fio de nylon quase invisível, a frente do quadro.  Atraído pela novidade, o estudante  levou a ferramenta ao olho direito e pôs-se a apreciar a obra.
Na tela estava estampada a figura barroca de uma mulher despida, tão negra quanto a noite. Já não era jovem e sua nudez de ébano estava realçada pelas imensas tranças nos cabelos branquíssimos.  Seu corpo curvilíneo contestava a gravidade, sem peso debruçando-se delicadamente sobre um microscópio.  Observando com mais atenção, o estudante percebeu que na lâmina microscópica havia um chimpanzé vestido com uniforme colegial.  O símio estava numa sala de aula, lendo um livro.  Aproximando mais a lupa do quadro, foi possível ler nas páginas do livro:

Toco a campainha hipnótica
do seu futuro brilhante
que ecoa sem resposta.
Abro os olhos e entro,
não vejo ninguém
apenas sentimentos dispersos
povoando a solidão.
Seu trabalho faz-se longo
e as paredes de pele e osso
não abrandam a fúria
de tamanha resignação.
Na atmosfera rarefeita
não são raros  os efeitos
quando respiro o ar
desconfiado da espera.
Das profundezas guturais
não são poucos os defeitos
quando escorre  o suor
de  gestos pouco cotidianos.
Às minhas costas quentes
toca a campainha hipnótica.
Ninguém entra,
apenas sombras assassinas
guardiões da iniquidade 
 e pelo suor em seus rostos
estão a minha procura!
Corro, sem sair do lugar
  me escondendo na perfeição do existir.
Confundem-me assim
com o próprio medo,
matando-se umas as outras
Do seu sangue, a substancia insubstancial
virtualizou-se num tapete de flores,
numa luz que  guia aos aposentos
da contemplação final.
Não havia porta,
entrei
Não havia cadeira,
sentei
Bem defronte a você
bem diante do que nega a afirmativa!
Com os sentidos anestesiados
pelos ecos da campainha
suas palavras soaram mudas. 
O que vibrou minha carne
foi um  toque confortável
como uma ausência de dor,
como o meio da batalha
onde os inimigos unidos
morrem por amor.

De súbito, as luzes do museu começaram a diminuir e um funcionário avisou que estavam fechando. Só então o jovem estudante foi levado a crer que passara uma tarde inteira absorto na enigmática obra.  Seus colegas já haviam ido embora.  Muitas de suas dúvidas também, a exceção de uma que acabara de se formar e estava tomando conta de todo o universo: Quem seria o criador genial que assinava enigmaticamente com as iniciais J.L.? O que mais o deixou  intrigado é que as iniciais eram iguais as dele!
Entregue a tal reflexão o estudante voltou pra casa andando no começo de uma noite possivelmente longa.  Depois de esbarrar num orelhão  ele percebeu que a fome e o cansaço vieram a tona.  É quando os reflexos e os sentidos funcionam mal. Devia ser por isso que a cada esquina que dobrava tinha a impressão de escutar uma estranha campainha tocar as suas costas.


  * Fragmento de Universos Profanos

VI - Idioleto*


O apresentador de um decadente programa de auditório estava nos bastidores cheirando a última fileira de cocaína antes de subir ao palco, quando foi comunicado que havia sido despedido. O motivo não foi citado, mas todos na emissora sabiam que ele estava tendo um caso com a namorada do seu diretor. O que todos também sabiam, é que seu diretor era gay.
- Então - gritou o apresentador diante do espelho -  por que isso agora, por que? Eu estou sendo dispensado depois de tantos serviços prestados por que? Tem alguém querendo o meu lugar ou isso é apenas mais uma jogada para manter as aparências, para manter o joguinho barato de algum mísero apostador? Tudo bem, tudo bem, mas eu pago pra ver, e quer saber?
Indignado e instigado, o apresentador dirigiu-se ao palco repassando  e remoendo tudo que como homem de comunicação, vinha pensando e sentindo nos últimos vinte anos. Rápido como um furacão, postou-se diante de uma platéia sempre previsível e detonou:

Boa noite!
Eu vou ser direto,
 assim mesmo em sentido contrário:
Ontem
eu disse palavras que nada dizem
apenas desdizem
enquanto criei frases que nada formam
no mínimo deformam
ontem.
Hoje
eu digo já, aqui e lá
e vocês devem estar pensando
que tudo não passa de
Idio ...idiotice...
 idioleto pessoal e coletivo,
tanto faz na China
quanto na esquina.
Pois eu sou
uma idio ... idio ...
idiotice semântica,
uma mentira maquiada num discurso elaborado
sentido contrário e quem sabe inverso
Direto. Lógico. Formal.
Alguém aí sabe o que é dissimulação?
Alguém aí quer ganhar uma fortuna pra ficar no meu lugar?
Alguém quer subir aqui pra ter tesão?
  Meu papel é idio ... idio ...
idiossincrático, sincrético,
manifesto em dialeto concreto
no ponto G da audiência
esse gado em festa
que Deus abençoou.

E pra quem preferiu não entender, ele disse ainda:
Vocês aqui, vão pra casa.
Vocês em casa, desliguem o aparelho.
O show acabou, a vida segue.
Muito obrigado!




No dia seguinte o comentário  da hora nos bastidores das telecomunicações era de que o velho programa de auditório com sua fórmula esgotada, mudara radicalmente  causando o maior frisson. Falou-se ainda que o amarelado apresentador que muitos julgavam as vésperas de uma aposentadoria, teve seu contrato renovado com salário nas alturas.  Falam até que ele já anunciou casamento com a ex-namorada do seu diretor. 



  * Fragmento de Universos Profanos