sexta-feira, 1 de abril de 2011

V - Visita*

O  estudante de nível médio visitava pela primeira vez uma exposição de artes plásticas.   Depois de muito ouvir falar de arte fragmental estava ele ali, junto ao grupo de colegas observando tudo com grande curiosidade e atenção. Notou num canto pouco iluminado, um quadro em proporções reduzidas.  Chegando perto, notou também uma lupa pendurada num fio de nylon quase invisível, a frente do quadro.  Atraído pela novidade, o estudante  levou a ferramenta ao olho direito e pôs-se a apreciar a obra.
Na tela estava estampada a figura barroca de uma mulher despida, tão negra quanto a noite. Já não era jovem e sua nudez de ébano estava realçada pelas imensas tranças nos cabelos branquíssimos.  Seu corpo curvilíneo contestava a gravidade, sem peso debruçando-se delicadamente sobre um microscópio.  Observando com mais atenção, o estudante percebeu que na lâmina microscópica havia um chimpanzé vestido com uniforme colegial.  O símio estava numa sala de aula, lendo um livro.  Aproximando mais a lupa do quadro, foi possível ler nas páginas do livro:

Toco a campainha hipnótica
do seu futuro brilhante
que ecoa sem resposta.
Abro os olhos e entro,
não vejo ninguém
apenas sentimentos dispersos
povoando a solidão.
Seu trabalho faz-se longo
e as paredes de pele e osso
não abrandam a fúria
de tamanha resignação.
Na atmosfera rarefeita
não são raros  os efeitos
quando respiro o ar
desconfiado da espera.
Das profundezas guturais
não são poucos os defeitos
quando escorre  o suor
de  gestos pouco cotidianos.
Às minhas costas quentes
toca a campainha hipnótica.
Ninguém entra,
apenas sombras assassinas
guardiões da iniquidade 
 e pelo suor em seus rostos
estão a minha procura!
Corro, sem sair do lugar
  me escondendo na perfeição do existir.
Confundem-me assim
com o próprio medo,
matando-se umas as outras
Do seu sangue, a substancia insubstancial
virtualizou-se num tapete de flores,
numa luz que  guia aos aposentos
da contemplação final.
Não havia porta,
entrei
Não havia cadeira,
sentei
Bem defronte a você
bem diante do que nega a afirmativa!
Com os sentidos anestesiados
pelos ecos da campainha
suas palavras soaram mudas. 
O que vibrou minha carne
foi um  toque confortável
como uma ausência de dor,
como o meio da batalha
onde os inimigos unidos
morrem por amor.

De súbito, as luzes do museu começaram a diminuir e um funcionário avisou que estavam fechando. Só então o jovem estudante foi levado a crer que passara uma tarde inteira absorto na enigmática obra.  Seus colegas já haviam ido embora.  Muitas de suas dúvidas também, a exceção de uma que acabara de se formar e estava tomando conta de todo o universo: Quem seria o criador genial que assinava enigmaticamente com as iniciais J.L.? O que mais o deixou  intrigado é que as iniciais eram iguais as dele!
Entregue a tal reflexão o estudante voltou pra casa andando no começo de uma noite possivelmente longa.  Depois de esbarrar num orelhão  ele percebeu que a fome e o cansaço vieram a tona.  É quando os reflexos e os sentidos funcionam mal. Devia ser por isso que a cada esquina que dobrava tinha a impressão de escutar uma estranha campainha tocar as suas costas.


  * Fragmento de Universos Profanos

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