sexta-feira, 1 de abril de 2011

IV - Revelação*

Por volta de três da manhã, a dedicada professora de lógica formal ainda corrigia provas.  Já cansada, botou os olhos na avaliação de um aluno que ela não conseguiu identificar, mesmo após ler seu nome várias vezes. Ela que sempre foi elogiada por sua memória fotográfica, se sentiu desconfortável. Mais desconfortável ficou ainda quando ela aproximou o documento da luminária e percebeu que a prova havia sido escrita com tinta vermelha que  não estava totalmente seca.
As pálpebras da docente começaram a fechar pesadamente, mas  após um gole de café ela seguiu lendo , e aos poucos foi tendo contato com o que estava escrito no espaço reservado para respostas:
  Eu estou em DEUS
tu estás no eu
em dEUses  me partilho
teu DeuS  mEU !
Eu sou no seu Deus
mEUs   EUs   tEUs
u  tEU dEUs...
atEU sEU...
EUs,
EU

Ao terminar de ler aquela avaliação, uma mulher que quase nunca sorria levantou-se e foi até a cozinha. Com mãos suadas se apropriou de uma garrafa de champanhe guardada por extensos doze anos.  Sorvendo o líquido diretamente do gargalo, sentiu medo ao lembrar que dentro de oito dias completaria cinquenta anos.  Sorriu e gargalhou. Só depois de mais alguns goles, teve certeza que nunca fôra tão fácil e prazeroso sorrir e gargalhar. Na verdade não se achava capaz de tal proeza, nem nunca acreditara  seriamente que valesse a pena, afinal esses comportamentos não faziam  sentido lógico.  Como nunca, uma atitude impensada se fez  precisa e inquestionável. Ela  deixou o resto das provas para  corrigir depois e continuou a sorver o precioso líquido, afim de absorver suas profundas substancias. Claro que não conseguiu evitar  de ler aquela prova mais algumas vezes antes que o dia raiasse.
Ao acordar, atingida pela ressaca - a primeira que se permitiu em meio século -   mas não moralmente abatida, tratou de se recompor  e viu o que deveria ser  prioridade lógica  antes das prioridades lógicas. Sem pestanejar, decidiu aceitar a licença prêmio que tinha direito há algum tempo. Com calma, mas sem a frieza do raciocínio habitual; adiou seus compromissos,  gravou uma mensagem na secretária eletrônica, comprou   roupas novas e partiu para uma longa viagem pela planície dos Andes.

  * Fragmento de Universos Profanos



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