sexta-feira, 1 de abril de 2011

II - A Última Piada*


              A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas sentadas         


        

Finalmente, após longa espera, saíra o veredicto para o réu que nas últimas semanas vem estando no centro das atenções da mídia e da opinião pública; um palhaço acusado  de chacinar uma plateia inteira. Pelos requintes de perversidade apresentados no hediondo crime - a plateia morreu de tanto rir após o palhaço contar uma piada letal –  a histriônica personagem foi considerada culpada e sentenciada a seriedade perpétua.
Arrasado pela situação, o palhaço entre lágrimas e soluços implorou ao juiz para que lhe fosse concedido, diante do júri e das câmeras de TV, o direito de contar a última piada.  De imediato, uma gargalhada coletiva tomou conta do tribunal.  O  juiz mal conseguindo se conter no contexto absurdo do pedido consentiu, antes questionando com sarcasmo se  os presentes não correriam algum risco. O tribunal se dividiu   entre o riso de uns, e a desconfiança de outros.  O palhaço assumiu uma feição tão séria que todos se calaram. Então ele sorriu, levantou-se  e falou:
Dançando em frente ao espelho
encontra-se um palhaço nu em pelo
querendo a todos seduzir,
inclusive a si e a si mesmo
Um clown que ri e chora
das desgraças da  triste plateia
e de você ele fala agora
no embalo de uma noite de festa:
Quando nasce o  belo dia
eu plugo o fone do destino
contando piadas sujas
que a você dedico
À tarde você sai
e eu derrubo suas paredes
só pra te ver voltar y volver
pedindo abrigo que seu dinheiro
nunca pode ter
À noite com o sono girando
 ao redor de sua cabeça
eu urro, suo, gemo
 te empurrando da rede
Ao entrar no seu sonho
eu digo e você ouve:
“Bem-vindo ao paraíso fantasma
ao grande circus humano
onde o seu ingresso
é o desejo de desejar
A sua sorte já foi lançada
junto a moeda do troco
e o perfume que te segue
tem a marca dos escolhidos
Se o medo te dominar
saiba que esse medo  faz crescer
celebrando as batalhas urgentes
da ciência do corpo e mente”
Pra quem a vida é uma piada
eu estendo o chapéu 
e entre uma risada e outra
espero que depositem a fé!
Os sinos dobram
e eu escolho quem pode rir
pelo cheiro do sexo
Quando cessa a música
eu cito Shakespeare
arrancando lágrimas sanguíneas
de velhos, crianças e mulheres mal-amadas
Entre um dia e outra noite
eu arremesso bombas de fumaça
projetando vossos letárgicos sentidos
na nostalgia duma paixão esquecida
Com um falo imaginário
eu estupro vossas dores
e com um beijo envenenado
acaricio vossos traumas
Agora quase perto do fim
me responda sinceramente
 - mesmo que isso contrarie sua natureza -
você acha que da minha piada
quem ri por último ri melhor?
Ato consumado,
o palhaço de Deus ri
 e  rindo rompe a vigésima quinta hora
antes mesmo que você acorde
antes, enquanto a piada se resolve
 Como vosso espelho cheio de luz
só reflete o vácuo,
o palhaço que nu ri e dança
e te acorda
dança em você e quer saber:
- Quem ri agora?
ri o filho de Deus ou o prisioneiro da aurora?

        A partir desse instante as informações são contraditórias, mas em um aspecto parece haver um consenso em relação ao que aconteceu naquele tribunal; todos lembram claramente de escutar uma ensurdecedora gargalhada, um som para uns tribal, para outros metálico, som que se propagou como um eco de si mesmo. Os presentes no recinto pareciam ter sido lançados num transe catatônico, e só aos poucos o torpor coletivo foi se dissipando.  De maneira inusitada, muitos retomaram o fio da meada se sentindo bem, alguns até se dizendo revigorados, a despeito da bizarra circunstância.  Só após então, sinalizado pela promotora, percebe-se que no lugar onde antes encontrava-se o palhaço, há apenas uma peruca laranja, um nariz vermelho e um espelho parcialmente quebrado com um sorriso estampado no centro.

  * Fragmento de Universos Profanos
     Imagens - autores desconhecidos

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