Como tem sido cada vez mais comum adaptar o discurso racial
estadunidense ao Brasil (por exemplo, o colorismo foi pautado pelas redes
sociais depois que a negra de pele clara Fabiana Cozza foi "barrada" para o papel da negra de pele escura Dona Ivone Lara sem levar em conta que o Brasil é miscigenado e
os EUA não são) talvez seja interessante perceber outros olhares sobre a
questão. A Netflix pode ajudar nisso. Nela, duas obras trazem para perto
olhares incomuns sobre o tema até em suas terras de origem.
O primeiro olhar está presente em Atlanta, série
estadunidense criada, estrelada e às vezes dirigida por Donald Glover, aquele
que quebrou a Internet há pouco tempo com o pseudônimo (ou alterego) de Childish Gambino e seu vídeo viral This
is America. Sim, aquele vídeo do jovem negro sem camisa em situações que
remeteram a episódios de violência física que marcaram os EUA na última década.
Na série exibida pela Netflix é trazido outro tipo de violência, também
estrutural, porém muito mais simbólica do que física, a violência embutida na tentativa
de ascender socialmente em ambiente onde as oportunidades não são iguais para
todos os negros. O personagem de Glover tentar ser o empresário do rapper Paper Boi em situações que num primeiro
olhar (quero dizer, num olhar “tipicamente brasileiro”) não trazem nada de
engraçado ou filosoficamente relevante. É aí que está o segredo da série, na
sutileza com que trata os pormenores das relações cotidianas - quem não tem
intimidade com a ironia e o sarcasmo corre o risco de não penetrar na viagem.
Certas situações que podem ser pensadas como humilhantes e geradoras de pura
estigmatização recebem um tratamento que podem fazer o espectador questionar
qual é sua zona de conforto enquanto observador dessa história. Glover consegue
ser sutil quando muitos seriam grosseiros.
Já no filme Mais uma página, atravessamos o Atlântico na companhia
de Kagiso Lediga e vamos parar na África do Sul. Quem aqui sabe alguma coisa
sobre a África do Sul além de Mandela e do Apartheid? Esse filme despretensioso
de Lediga (também escrito e protagonizado por ele) nos oferece a oportunidade
para conhecer esse território, mas mesmo assim nunca se está totalmente preparado
para um outro tããão distante. Quem poderia imaginar que os problemas dos negros "não tão pobres" de lá não são tão diferentes dos negros não tão
pobres daqui? Sim, porque, o primeiro choque cultural é perceber que um filme
que se passa em Joanesburgo não tem como foco os negros pobres dos guetos. O
que vemos são negros com um alto padrão de consumo e em um ambiente
universitário. Para não sermos spoiler evitaremos detalhes, contudo é o lugar
de fala do protagonista que desencadeia as questões centrais do filme, o lugar
de fala de um negro de classe média professor universitário problematizador de
questões do cotidiano - alguns de vocês até acham que já conhecem esse filme,
né? Cuidado! Também nessa obra nada é exatamente óbvio e alguns podem até
demorar certo tempo para assimilar o fluxo de ironias!
De todo modo, entre discursos de fora e de dentro da nossa
realidade mais próxima, o olhar de cada um sobre essas obras vai depender das
cores que aprendeu a usar no seu cotidiano e das consequências que esse matiz de
cores pode oferecer. Nesse sentido assista essas obras e perceba se elas vibram
em preto e branco ou de acordo com o colorismo que é ensinado nas redes sociais.
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